"Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o."
Ricardo Reis, heterônimo de sopro clássico de Fernando Pessoa.


quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Histórias de Quadros e Leitores. "Ut pictura poesis." (Na poesia, da mesma forma que na pintura)

Queridos,
Transcrevo abaixo alguns fragmentos interessantes de um dos livros que leio atualmente: Histórias de Quadros e Leitores, organizado por Marisa Lajolo; um prato cheio para quem, assim como eu, gosta da Arte em suas mais variadas formas de expressão.

"Pintura é poesia muda, e poesia é pintura que fala." - Marisa Lajolo


La donna che legge (A dama do livro) - Roberto Fontana

No dia 18 de abril de 1895, leitores de A Gazeta de Notícias, jornal carioca de grande prestígio, encontraram nas suas páginas um curioso poema de título meio enigmático: Soneto Circular. Assinava os versos um nome já bastante conhecido na época e hoje, tão famoso autor de Brás Cubas: Machado de Assis.
O soneto publicado em 18 de abril era assim:

Soneto Circular

A bela dama ruiva e descansada,
De olhos longos, macios e perdidos,
C'um dos dedos calçados e compridos
Marca a recente página fechada.

Cuidei que, assim pensando, assim colada
Da fina tela aos flóridos tecidos,
Totalmente calados os sentidos,
Nada diria, totalmente nada.

Mas, eis da tela se despega e anda,
E diz-me: - "Horácio, Heitor, Cibrão, Miranda,
C. Pinto, X. Silveira, F. Araújo,

Mandam-me aqui para viver contigo."
Ó bela dama, a ordens tais não fujo.
Que bons amigos são! Fica comigo.
MACHADO DE ASSIS

Aprofundando o poema:
Tudo parece ter começado com um quadro que Machado teria ganho de presente de amigos (que pode ser visto por quem visita hoje o acervo machadiano da Academia Brasileira de Letras, no Rio). Era La donna che legge, pintado em 1882 por Roberto Fontana.
Andando pelas ruas do Rio de Janeiro, Machado teria se encantado com o quadro exposto na vitrina de uma loja da rua do Ouvidor. Talvez naquele dia ele estivesse acompanhado por um amigo, que testemunhou seu encanto pela pintura; talvez tivesse comentado com outro seu fascínio pela tela. O caso é que correu de boca em boca que ele gostaria de possuir o quadro, mas talvez não pudesse arcar com a compra dele. Resolveram, pois, vários amigos, cotizar-se e presenteá-lo com a tela.
O quadro foi parar na residência Assis, no Chalé da rua Cosme Velho, em Laranjeiras, ao lado de móveis e objetos. A tela testemunhava a vida doméstica do escritor - que tão bem esmiuçou a vida doméstica brasileira, devassando-lhe amores e ciúmes, casamentos arrajados, pobrezas decorosas e heranças espúrias - com sua bem-amada Carolina.
Seguiu à oferta do presente a composição de Soneto Circular, enviado a cada um dos amigos mencionados nos versos 10 e 11 (Horácio Guimarães, Heitor de Basto Cordeiro, Ernesto Cybrião, Antônio da Rocha Miranda, Caetano Pinto, Joaquim Xavier da Silveira e Ferreira de Araújo) e que um deles - Ferreira de Araújo - encarregou-se de publicar no Jornal, tornando público o agradecimento do escritor.


Aprofundando a tela:

Machado deve ter se perdido em conjecturas: porque a leitora teria nas mãos um livro fechado? Para melhor meditar no que lá estava escrito ou porque a leitura a entendiava? O dedo entre as páginas do livro marca onde a leitura parou ou é apenas um modo casual de segurá-lo? E a tesoura que mal se vê na outra mão? A leitora se preparava para cortar um trecho que particularmente a agradou ou ia picotar uma passagem que a desagradou? Ou, será ainda a tesoura apenas um enfeite no cenário?
Perguntas sem respostas, ou melhor, com uma pluralidade de respostas. Fica estendido o convite à desentranhá-las.
Acho fascinante a intertextualidade entre obras! Com essa, entre Fontana e Assis não é diferente...

Porque o que me dá prazer nas leituras não é a beleza das frases, mas a doença delas!

Alana Oliveira.

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